Postal de Lisboa V - O 25E


Passear por Lisboa num dos velhos eléctricos amarelos é quase uma experiência extra-sensorial. É como se entrássemos numa cápsula do tempo. Sentada junto a uma das amplas janelas de madeira, avançando a ritmo lento pelas ruas estreitas, sinto que posso estar aqui e agora, como posso estar nos anos 30, dentro de um dos antigos filmes portugueses. Qual Mary Poppins que salta para dentro das pinturas, no parque, assim eu entro num eléctrico, dos velhinhos, e parto para outra dimensão.
Há eléctricos famosos: o 15, que percorre a zona ribeirinha até Algés; o 28, que sobe até à Graça… Um dos meus preferidos, no entanto, é o eléctrico n.º 25E. Parte da Rua da Alfândega e sobe até aos Prazeres. Na realidade, constitui uma espécie de passeio pela estrutura social de Lisboa. Vai avançando pelas ruas da zona do Cais do Sodré, até ao Largo do Conde Barão. É a Lisboa popular, confusa, das ruas atulhadas de veículos de todo o tipo, das casas com a pintura a cair e roupa a secar nos estendais. Há carros mal estacionados, que impedem o avanço do eléctrico. O motorista toca a campainha e entra pela janela um grito de “Raio do mechibombo!”, que trai a cultura popular mas também – e recordo que o machibombo era o autocarro angolano - a ligação antiga às colónias. Olho para fora, a ver se avisto o autor do grito, mas já não vejo nada, só um rapaz que viaja pendurado na porta de trás do eléctrico. Vai ali para não pagar bilhete, ou então pelo puro prazer de transgredir, já que há muito espaço dentro do eléctrico. Troca graçolas, aos gritos, com dois rapazes que vão sentados dentro do eléctrico. Usam bonés com a pala para trás e um deles tem um “piercing” na sobrancelha. Os corpos balofos denotam excesso de fast-food, as cuecas puídas, que se vêem quase na totalidade, denotam falta de higiene. À minha frente viaja um casal de turistas. Eles não prestam atenção aos rapazes, mas em contrapartida sorriem espantados aos sacos de caracóis pendurados à porta das pequenas mercearias de bairro.
A partir do Largo de Santos, o eléctrico começa a subir a colina e a escala social. Aproximamo-nos da Lapa. Os edifícios mudam, a maioria tem as fachadas bem cuidadas, muitas delas cobertas de azulejos. São fachadas sérias, sisudas, viradas para dentro. Alguns deles são palacetes, outros são casas bem recuperadas, com belas portadas e vislumbres de jardins interiores. Há menos gente na rua, menos barulho, menos confusão.
O eléctrico chega ao Largo da Estrela e passa entalado entre a Basílica e o Jardim. A partir daí, é Campo de Ourique, ruas agradáveis sombreadas por grandes árvores, cafés com pequenas esplanadas onde avós e netos bebem chás e leites achocolatados, lojas de bairro. Sempre foi um bairro da classe média e continua a sê-lo. O eléctrico continua a viagem até aos Prazeres, nome estranho para um cemitério, ou talvez não. Há quem diga que as classes sociais também se vêem nos cemitérios, há-os mais finos e mais populares. O cemitério dos Prazeres parece ser dos mais distintos. Mas não me parece que isso seja importante para quem ali tem a sua última morada.

Comentários

  1. Adorei esta tua descrição!
    Também gosto de andar de eléctrico, mas o que mais acontece é viajar de carro pelas ruas de Lisboa. Qualquer dia temos de fazer iso as duas.
    Bjokas

    Romicas

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  2. Eu acho que as cidades só se conhecem a pé e devagar. Temos de voltar a ser turistas nas nossas próprias cidades.
    Bjs

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